sábado, janeiro 21, 2012

A Fuga de Lilli

Trilha: Tulipa Ruiz - Do Amor

    Estou na cozinha, tomando um gole de café, quando lembro que é dia de o lixeiro passar na rua. Recolho o lixo e atravesso o quintal carregando o peso. Abro a porta da garagem, levo o lixo até a frente de casa, deixo encostado no poste.
    Quando olho para trás, vejo que Lilli escapou.
    Agacho no chão e docemente começo a chamá-la “Lilli, vem meu amor, volta para casa. Lilli, vem”. Abro os braços, bato as mãos, faço sinal.
    Lilli já está no meio da rua. Olha para mim. Olha para os lados. Olha para trás. Continuo a chamá-la porque sei que ela está indecisa. Sabe que está fazendo arte. Sabe o que é certo. Continuo a chamar e vou dando pequenos passos agachada. E ela segue me olhando fixamente. Um olhar doce, cheio de compaixão. E aos poucos começa a dar passos para trás. Olha para trás, olha para mim, e dá mais um passo. Fico afobada e continuo indo em direção a ela, na esperança de que ela me reconheça como dona e volte para casa.
    Então, com medo eu me levanto e me silencio. Faz 3 meses que veio morar conosco.
    Fico olhando para ela, sem querer acreditar que depois de tanta dedicação e apego ela vai nos abandonar. Aprendi a amá-la e sei que ela também aprendeu comigo.
    Mas ela segue dando passos para trás, olhando para mim, olhando pra trás, até que cria coragem e corre livremente rua acima, corre cada vez mais rápido, sem perseguir ninguém. E desaparece.
    Por que fazer isso? Íamos passear todos os dias. Ela estava feliz. Tinha comida, carinho, conforto. Estava tão obediente em casa a pobrezinha. E ao sair na rua parecia que havia esquecido todos os nossos momentos.
    Entro em casa, desconsolada, frustrada. Fico de minuto em minuto olhando pela janela. E nada. Perdi Lilli. Como foi possível?
    Vou jantar... Passam horas, fico com o coração na mão, como medo de que o instinto dela tenha se perdido e que seja atropelada, ou maltratada. Fico com medo dela não dar conta de ser um cão de rua novamente, medo dela não estar preparada.
    Mais tarde, já desiludida, antes de deitar, decido olhar pela janela pela última vez. E lá está ela. Sentada na frente de casa, esperando eu abrir a porta.
    Abro a porta feliz da vida. A recebo com alegria, ela me recebe de volta. Entra em casa e vai correndo em direção ao quintal, onde está seu amigo Mike. Chega nele feliz, brincando, ele fica animadíssimo. Come, bebe água. Parece cansada. Deita ainda ofegante. Mike fica sentado ao seu lado, cheirando seu corpo, tentando descobrir por onde ela andou. Está tudo bem. Vou dormir relaxada.
    Dias depois, ao abrir o portão do quintal para colocar o lixo na rua novamente, saio rapidinho mas ela é mais rápida do que eu. Olho para trás e lá está ela, Lilli, na garagem. Quando noto, vou de encontro a ela brincando, falando carinhosamente, como se não tivesse notado que ela escapou. Mas é tarde. Ela dá uma corrida para o meio da rua e de longe fica me olhando, com o mesmo olhar. Olha ao redor, olha para mim. Começo a chamá-la e ela começa a dar passos para trás, olhando para mim. E decide. Sai correndo num pinote, rumo a si mesma. Atrás sabe-se lá do que. Atrás de si.
    Mas sinto que posso ficar tranqüila. Lilli não é minha. Nunca foi. Lilli é livre. Ela não escapou. Ela se lembrou de como é estar por si mesma. Lilli volta mais tarde, quando der fome. Na verdade é injusto pensar assim dela. Lilli pode voltar quando der saudade. Por que não? Como vou saber o porquê de sua volta? Essa é Lilli.
    Aquele seu olhar, dizendo a mim que eu não sou dona dela, sou apenas sua amiga, aquele olhar, é de uma ousadia para a vida. É de uma solidão... É de uma noção de si mesma.
    Tento a cada dia cultivar em mim esse mesmo olhar. E me ver da mesma forma. Como alguém do mundo. Alguém solto no mundo. Sozinho. Consciente de sua solidão e liberdade de decidir estar ou não.
    Lilli sempre volta. Mas quando penso que ela aprendeu, foge de novo. Sinto hoje, que Lilli sempre vai fugir e sempre irá voltar. Só para ter a certeza de que pode decidir quando quiser. Só para se lembrar de que o mundo é seu e pode mudar de rumo a qualquer momento.
    E é bem provável que Lilli não saiba que eu sinto o afastamento dela como uma fuga. Porque ela sabe que vai voltar. Bem, talvez ela não tenha certeza disso. Talvez ela só saiba que me ama. E eu sinto isso no olhar dela quando está prestes a partir. É um momento dramático, porque eu tenho a doce impressão de que fica em dúvida. Mas naquele momento não é uma dúvida entre escolher o amor e a liberdade. É outra coisa. Parece mais um momento em que está em luta algo mais profundo, escolher entre a parte de si que está satisfeita e parte de si que deseja mais. É escolher entre ficar em terra firme e se lançar ao mar, ao desconhecido. É escolher entre ser parte da terra e ser parte do mundo.
    E o que eu posso fazer por ela? Nada. E nem ela espera que eu faça. Ela não precisa de nada. Talvez espere apenas que eu não a puna por isso, e a receba de braços abertos sempre que ela conseguir voltar.
    Talvez essa seja a melhor definição Do Amor que dura.

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