sábado, fevereiro 18, 2012

Achei um 3x4 teu

Trilha: Cyndi Lauper - Sally’s Pigeons
        
     Todo mundo tem uma caixinha de lembranças.
    Uma caixinha que fica guardada no fundo do guarda-roupa, ou no fundo de um armário, numa gaveta, em algum canto escondido onde a gente nunca mexe. E nunca mexe porque sabe o que tem lá: memórias. Ninguém quer conviver com memórias. As fotos, cartas, pedaços de coisinhas pequenas não esquecidas foram feitas para ficar guardadas. Por quê? Por que não queremos esquecer, mas não confiamos na nossa capacidade de lembrar? Por que fomos felizes? Por que fomos tristes e foi preciso? Por que fomos tristes, foi preciso e valeu à pena? Por que poderia ter valido à pena? Por que é sempre bom lembrar, mas não o tempo todo? Por que é sempre bom esquecer, mas não por completo? Por que podemos mostrar aos outros, filhos, netos? Por que podemos mostrar a nós mesmos o que fizemos da vida? Por que ninguém pode saber? Por que quando morrermos alguém pode achar e isso é bom? Porque de vez em quando podemos achar... E isso é bom.
     Não, não foi na minha caixinha. Minha mãe estava mexendo numa caixa de documentos muito antigos, que documentavam coisas que já não existem, como comprovantes de pagamentos de contas e recibos. Mas, além dessa tranqueirada toda havia cartões e carteirinhas: de bancos, convênio médico e da escola, da minha escola. Isso porque todo ano eu era obrigada a tirar uma foto nova, datada, e fazer outra carteirinha de identificação da escola que, ao menos para mim, só usava para pagar meio ingresso no cinema.
      Enquanto remexia os papéis e fotos, ria engraçado das nossas imagens antigas e rasgava o que ia jogar fora, minha mãe encontrou um tesouro.
      “Filha, venha ver isso!”.
      Quando peguei de sua mão achei graça. Uma carteirinha sua da EESG Prof. Américo de Moura, de 1996. Na foto, em 3x4, você está de cabelinho curto, uma camiseta cinza, e brinquinhos de argola. Você deveria ter uns 17 anos, mas aos meus olhos parecia uma criança. Carinha séria, fazendo bico, olhar sério, não sei se cansado, se com sono, se triste.
        Rememorando, correndo o grande risco de recriar boa parte da história, nessa época nós estávamos começando a nos afastar pelo tempo. É bem possível que tenhamos ido ao cinema pela última vez e você a tenha esquecido e não tenha mais precisado dela. Eu ainda era muito criança e você, uma moça. Morávamos longe. Tínhamos responsabilidades diferentes e afazeres diferentes e começávamos a ter amigos diferentes. Começávamos a nos distanciar. Mas a carteirinha ficou comigo.
      E como a gente nunca consegue deixar de se enxergar através das pessoas, olhei para mim em 1996 através de seus olhinhos pequenos. E me vi falante, inquieta, questionadora, recontadora incansável de histórias. Vi você na minha casa, fritando batatas, assistindo TV, papeando. Vi a gente brincando de desfile com as camisolas da madrinha. Me vi falando sem parar. Vi você com tanta paciência, sempre ao meu lado, desde sempre.
      Acontece que você fez parte da minha vida antes dela acontecer, quando eu ainda estava para chegar você já estava nas fotos, olhando para o tempo, aguardando o tempo. E quando nasci você estava lá, pacientemente ao meu lado, junto comigo, me ajudando a entender, me ajudando a crescer.
      Andávamos pelo centro da cidade juntas, íamos ao cinema, ouvíamos música, alugávamos filmes, íamos à praia e encostávamos nas paredes da vida para suspirar sem entender e, isso é lindamente ingênuo, sem notar.
      Olhando sua foto percebi o quanto perdi de você. Não pude participar de alguns de seus momentos mais importantes. Espero que você tenha me perdoado por isso. Meus momentos também ficaram ocultos pela distância.
      Deu saudade de você. Muita saudade de quem eu era e de quem você era. Que pena que chega a hora de crescermos sozinhos.
       Hoje cai sobre mim o fato de que eu não te conhecia realmente. Eu não sabia o que se passava com você. Eu não sabia ao certo. Ainda que fôssemos muito próximas e grandes confidentes a impressão que tive ao te olhar é que aquela doce menina da foto 3x4 era, e ainda é, um segredo para mim.
      Mas em meu olhar, refletindo o seu rosto, despertou um amor tão grande... E muita gratidão. Não por causa do que eu conheci, do que eu apreciava, do que foi feito junto, do que ficou registrado. Meu amor e gratidão vieram e ficam na alegria de perceber que você ainda está aqui e que posso continuar a conhecê-la.
        Que as paredes da vida ainda nos permitam encostar juntas algumas vezes, olhar o céu escuro de binóculos, e partilhar não mais as confidências de adolescente, mas a passagem... A passagem do tempo..., que fica impressa nas fotografias, na única carta que você me escreveu e que tenho até hoje, nos seus amigos que eu não conheci, no seu choro que eu não vi, na sua carteirinha de escola que eu guardei ou simplesmente esqueci. A passagem do tempo. Do tempo que passou. Do que a gente se tornou. E do que juntas ainda somos capazes de construir.

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